Ato Inseguro e Tomada de Decisão (ARTIGO 3/4)

Ato inseguro e Tomada de Decisão: tudo aquilo que fazemos demanda uma decisão e o envio de uma mensagem para o nosso organismo, de modo que a ação decorrente da decisão que tomamos seja materializada. Invariavelmente, as ações na execução de uma tarefa são respostas a estímulos que recebemos, as quais determinam e orientam aquilo que fazemos.

A figura 1 descreve como processamos informações e como transformamos as demandas de trabalho em ações concretas no dia a dia, segundo o modelo descrito por Cristopher Wickens.

Tudo tem início com os canais de comunicação do homem com o meio externo que são seus sentidos: paladar, olfato, gustação, audição e tato. Desde o início do processo de tomada de decisão, é possível identificar que cada ser humano pode perceber o mesmo estímulo de formas diferentes, de acordo com a “sensibilidade” e “calibragem” do seu sistema sensorial que são individuais. É certo que muitos estímulos podem e são percebidos da mesma forma por pessoas diferentes e isto depende da assertividade do estímulo. Por exemplo, não é incomum o entendimento de solicitações verbais diferentes do propósito de quem solicitou porque a mensagem não foi clara e, nem o receptor, nem o emitente asseguraram que a mensagem real fosse entendida e assimilada no ato da comunicação.

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Figura 1 – Modelo mental de processamento de informações segundo Chistopher Wickens

Da mesma forma, o conteúdo e a velocidade do processamento também são peculiares a cada pessoa em termos de memória (curto e longo prazo), quando fazendo julgamento e análise para tomada de decisão. Quantas vezes deixamos de lembrar um fato que poderia facilitar o entendimento de um cenário e facilitar a seleção da alternativa de decisão? Quantas vezes lidamos com situações que exigem uma ação, mas não temos registros mentais de fatos similares para auxiliar no processo de tomada de decisão? Quantas vezes atuamos no “piloto automático”, tomando decisões e agindo, em situações rotineiras? Quantas vezes nos deparamos com situações de cansaço mental ou de total desatenção que dificulta o raciocínio e induz a erros de decisão. Por si só, a forma como processamos informações já sinaliza e confirma que errar é mesmo humano.

Interação homem – máquina

Inevitavelmente, o homem, na condução do seu trabalho, interage com máquinas e equipamentos e, dificilmente, esta interação é facilitada quando do projeto dessas máquinas e equipamentos, ou mesmo, o ambiente de trabalho não proporciona as condições adequadas para a dinâmica desta interação. A figura 2 apresenta um dos modelos que representa esta interação, defendido por David Meister’s no livro Human Factors: Theory and Practice, 1971.

Figura 2 – Modelo de interação de fatores humanos na relação homem–máquina

Figura 2 – Modelo de interação de fatores humanos na relação homem–máquina

Segundo o modelo, esta interface apresenta três elementos associados a máquinas e outros três associados ao homem, os quais podem constituir fatores de prevenção a erros humanos e, consequentemente, de incidentes e, por outro lado, podem também ser considerados fatores agravantes que predispõem e facilitam o erro, gerando eventos indesejáveis:

  • Elementos associados a máquinas e equipamentos na interface homem – máquina
    • Mostradores de máquinas cuja interface com o homem requer a observação no projeto relativo ao acesso a eles, visibilidade para leitura, tempo de resposta, especialmente aqueles que têm processadores e interface táctil, em caso de manuseio frequente para ajustes.
    • CPU de máquinas no que se refere à programação, estocagem, recuperação e transmissão de dados além de procedimentos de uso.
    • Instrumentos de entrada de dados, representados por sensores, controles, chaves, indicadores dinâmicos de variáveis de processo, teclado, uso de mouse, joystick, touch screen e mesmo aqueles dotados de comando de voz para operação.
  • Elementos associados ao homem na interface homem – máquina
    • Sentidos humanos, representados pela visão, audição, tato, olfato, paladar, de orientação, cinestésico, que constituem os elementos de percepção e processamento sensorial ou estímulos ao homem na condução do seu trabalho, a partir dos quais se desencadeia o processamento de informações e culmina com a tomada de decisão e ação (vide figura 1) . Invariavelmente, um erro de percepção se propaga na cadeia de processamento e decisão e pode resultar em um incidente.
    • Cognição humana, representada pela atenção no trabalho, o uso da memória de curta e longa duração, o processamento de dados e a tomada de decisão, os quais podem contribuir para a ocorrência de erros e incidentes mesmo que os estímulos externos tenham sido percebidos corretamente (vide figura 1).
    • Estrutura músculo-esquelético, compreendendo a coordenação motora, a manipulação de objetos e a ação propriamente dita, resultante do processo de tomada de decisão que, em última análise, completa a execução do trabalho na rotina do dia a dia.

homem maquinaÉ importante ressaltar que a dinâmica de processamento e tomada de decisão na rotina de trabalho pode se dar em diferentes níveis, situações e circunstancias, principalmente em termos temporais. Por exemplo, em se percebendo uma situação que requer ação rápida típica de emergências, todo o ciclo de processamento e tomada de decisão precisa ser completado em segundos ou minutos, incluindo as ações resposta ao estímulo inicial. Acrescente-se a isto deficiências ou lacunas, relativas a máquinas em termos de mostradores, CPU ou instrumentos de entrada de dados ou mesmo dificuldades naturais decorrentes de jornada de trabalho, estresse e outros e constrói-se o cenário propício para a ocorrência de um evento indesejável ou mesmo para dificultar a ação de prevenção deste evento.

Níveis de decisão no trabalho

Na rotina do trabalho as pessoas necessariamente precisam agir e, para isso precisam selecionar a melhor alternativa de ação e praticar centenas de vezes o ciclo de processamento de informações mostrado na figura 1, lidando com máquinas e equipamentos, com todas as suas características representadas na figura 2. O homem vive toda uma vida tomando decisões, cujas consequências delas depende. As decisões e, consequentemente, as ações decorrentes, podem ser classificadas em quatro níveis diferentes:

  • Decisões estratégicas: são normalmente tomadas sem pressão de tempo, feitas de maneira formal e compartilhada, com base em informações e através de análise estruturada, incluindo simulações. As decisões estratégicas normalmente envolvem mudanças de processos, mudanças organizacionais, alterações de produto, de ritmo de produção, aquisição de máquinas e equipamentos, dentre outras. As decisões neste nível costumam estar na esfera de competência da alta organização das empresas.

 

  • Decisões táticas: as decisões neste nível são de natureza operacional associadas à rotina de trabalho, às vezes formal, mas quase sempre baseadas na informalidade, tendo como referência o conhecimento e a experiência pessoal, geralmente tomadas a partir de discussões e muitas vezes consideram procedimentos e regras existentes, sejam eles documentados ou informais. A maioria das decisões neste nível é da esfera de competência dos gerentes médios e supervisores ou coordenadores.

 

  • Decisões operacionais: estas decisões são quase sempre automáticas, em resposta a sinais ou estímulos externos percebidos, cuja resposta é, na maioria das vezes construída, considerando dados da memória de longo prazo e às vezes da memória de curto prazo. A maioria das decisões neste nível está na alçada de pessoas executantes de tarefas no nível operacional. Este nível de decisão costuma ser associada àquelas decisões que tomamos no “piloto automático” e acontecem quando da execução de tarefas rotineiras e conhecidas. Decisões neste nível podem resultar em erro, quando tomadas por pessoas com baixo nível de experiência e capacitação, quando existem mudanças na tarefa não percebidas ou ignoradas por quem está decidindo ou uma combinação de ambos.

 

  • Decisões em emergências: neste nível de ação normalmente não há uma decisão propriamente dita, mas uma reação instintiva a um estímulo percebido e interpretado como muito perigoso e cujas consequências potenciais percebidas sejam da magnitude que coloquem em risco a integridade de pessoas, de equipamentos ou instalações. Na realidade, em situações de emergência as pessoas praticamente não decidem. Erros neste nível são muito frequentes, pois o ciclo de processamento de dados é quase sempre nublado pelas nossas emoções e senso de autopreservação. Neste nível, praticar com eficácia o modelo de processamento de dados requer muita habilidade e muita capacitação, o que reforça a importância dos exercícios simulados de resposta a emergências.

O processo decisório é uma dinâmica no trabalho em qualquer nível da organização e pode ser representado por um ciclo que interliga todos os elementos físicos envolvidos no ato de decidir conforme ilustra a figura 3.

 

ciclo de decisão

Figura 3 – Ciclo de decisão

O ciclo de decisão da figura 3 é percorrido diversas vezes por turno de trabalho independente se a decisão está no nível estratégico, tático, operacional ou emergencial. O que diferencia cada nível de decisão é a consistência do dado, a forma como se transforma o dado em informação, a habilidade para transformar a informação em conhecimento e o discernimento para interpretar o conhecimento e transformá-lo em decisão.

Mesmo que a decisão seja a mais pertinente e correta possível, o resultado esperado ainda depende da competência para executar a ação e da disponibilidade de recursos disponíveis para tal. Não é incomum situações em que a decisão seja acertada, mas que o erro esteja vinculado à ação seja por deficiência de competência, pela falta de recursos ou uma combinação de ambos.

É importante reconhecer que nem sempre quem toma decisão é quem coletou os dados e os transformou em informação. Nestes casos, a comunicação entre os níveis da organização assume papel relevante.

Em outra forma de abordagem, o ciclo de decisão da figura 1 pressupõe o uso e engloba em parte o modelo de processamento mental de informações da figura 3 no qual a interface homem-máquina está implícita. Em outras palavras, tanto o ciclo de decisão quanto o modelo de processamento de informações se complementam considerando a percepção do estímulo até a execução da ação resposta a este estímulo. O uso apropriado deles é que determina o desempenho no trabalho em termos de efetividade das ações e neste aspecto, o tipo de personalidade é outro ingrediente que pode determinar o resultado na dinâmica da interação homem-máquina na rotina de trabalho.

Níveis de desempenho no trabalho

O processo de tomada de decisão é na prática um meio de se alcançar resultados, sejam eles na dimensão de produtividade, de qualidade, de produto ou de processo quanto na ausência de incidentes e lesões. Segundo James Reason descreve no livro Managing Maintenance Error, é possível classificar o desempenho humano no trabalho em três níveis:

  • Desempenho baseado em habilidade: resultante de decisões automáticas associadas a tarefas rotineiras com verificações ocasionais de resultados. Este nível de desempenho pode ser relacionado com as decisões classificadas como operacionais nas quais as pessoas, na maioria das vezes agem no “piloto automático” tamanha é a sua familiaridade, experiência e habilidade na condução daquela tarefa.

 

  • Desempenho baseado em regras: resultante de decisões ás vezes automáticas e ás vezes elaboradas informalmente tendo como referência procedimentos e normas familiares e conhecidos. Este nível de desempenho pode ser relacionado às decisões de nível tático, para as quais as situações constituem problemas, mas que são problemas com sintomas conhecidos e familiares na rotina do trabalho.

 

  • Desempenho baseado em conhecimento: resultante de decisões conscientes, tomadas com base em fatos e dados, que normalmente demandam tempo e análise e que normalmente envolvem a solução sistêmica de problemas desconhecidos na rotina de trabalho. Este nível de desempenho pode ser comparado às decisões estratégicas no que se refere à estruturação da coleta de dados, interpretação de dados, ganho de conhecimento, possibilidade de teste de hipóteses antes de definir as ações pertinentes.

Esta forma de classificação, do desempenho associado a níveis de decisão, deixa claro que o desempenho ou resultado esperado depende da natureza do problema e da forma como respondemos a estes problemas, em termos de ação ou resposta. Deste modo, em situações de rotina conhecida, normalmente, a reação é automática como, por exemplo, o ato de dirigir para um condutor experiente e acostumado a um determinado trajeto. Normalmente suas decisões ao volante são baseadas em habilidade.

tomada de decisao - dirigirÉ por isso que a maioria das pessoas experientes em dirigir consegue dirigir seu veículo conversando, ouvindo música, apreciando a paisagem e as suas ações e reações ao volante se dão quase que de maneira automática. Em outro extremo, quando o mesmo motorista vai utilizar um veículo diferente do seu, fazer um trajeto diferente em outra cidade e em outro país que ele não conhece, precisa consultar o manual do veículo, um mapa, elaborar um trajeto, buscar informações sobre as regras de velocidade e selecionar um trajeto a partir destas informações. Nestes casos, é costumeiro dirigir com mais cuidado e as ações ao volante são normalmente no nível mais consciente e menos decorrentes do “piloto automático”. À medida que o motorista se familiariza com o veículo e com o trajeto novos, naturalmente, a forma de dirigir assume um estágio intermediário entre o consciente e o automático.

Este exemplo serve também para explicar o comportamento das pessoas no trabalho, definido como níveis de desempenho no trabalho, que varia de um extremo consciente até outro completamente no “piloto automático”. Em outras palavras, os níveis de desempenho podem ser entendidos como a consequência do processo de tomada de decisão, o qual requer a prática do processamento de dados, considerando todas as características da interface homem – máquina. O desvio de desempenho é o que comumente classificamos como ato inseguro ou erro humano, normalmente precursores da ocorrência de incidentes.

Não resta dúvida perante o conhecimento vigente de que o ato inseguro quando assim classificado ou o erro humano não são atos do acaso e nem culpa das pessoas. Eles têm origem nos projetos de máquinas, equipamentos, postos de trabalho, na elaboração de procedimentos, na forma como capacitamos as pessoas, na forma como a gestão e as relações no trabalho são conduzidas, na forma como decidimos e nos relacionamos e, fundamentalmente na forma como planejamos, executamos e controlamos aquilo que deve ser feito.

Em outras palavras, o ato inseguro pode ser minimizado e ocorrer como uma anomalia do processo de produção com frequência de ocorrência insignificante e sem consequências sérias. Este estágio será alcançado quando evoluirmos em termos de cultura de gestão de risco, praticando esta cultura deste a fase de concepção seja de máquinas, equipamentos, processos ou instalações, passando pela fase de implantação e operação dos mesmos até porque, gerir riscos é se antecipar à ocorrência prevenindo a ocorrências de eventos indesejados e mitigando antecipadamente as consequências potenciais desses eventos.

E só uma forma de prevenir e mitigar: através do uso de medidas de controle apropriadas, adequadas, pertinentes e suficientemente robustas e/ou redundantes quanto requerido em função da magnitude das energias envolvidas e dos possíveis e prováveis agentes, elementos ou comportamentos que por ventura possam liberar esta energia de forma imprevista e descontrolada. Isto é agir proativamente na prevenção de incidentes. Leia mais em nosso artigo: Medidas de Controle – Mitigando os Riscos

 

Continue lendo o próximo artigo que dá sequência ao tema: Indicador de Desempenho em Segurança do Trabalho (ARTIGO 4/4)

Autor : Reginaldo Pedreira Lapa
Engenheiro de Minas e de Segurança do Trabalho

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